*Reportagem: Priscila Oliveira / Foto de capa: Luana Maia
A matéria que você vai ler agora começou a ser produzida há alguns meses, mas ganhou um contorno especial em homenagem ao 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. O objetivo é mostrar que, muito além do viés comemorativo da data, ela é símbolo de luta, força e persistência. Uma construção individual, que se reflete coletivamente e tem poder de impactar e transformar não só as atuais, mas futuras gerações.
Essa história ganhou os primeiros contornos no município mineiro de Tocantins, mas promete transpor fronteiras através de uma jovem que sempre teve a certeza de que poderia romper qualquer barreira, seja social, de gênero, raça ou idioma. E é assim que a atleta Bárbara Rocha faz jus ao nome que recebeu e cujo significado é “pessoa original, que está sempre em busca de novidade”. “Sempre fui muito envolvida com esporte, desde criança. Joguei vôlei e handebol na escola. A luta veio primeiro, mas, uma semana depois que eu fiz minha primeira competição, participei de uma corrida do lado da minha cidade. Comecei os dois esportes praticamente juntos. A corrida sempre fez parte da minha preparação para a luta, então, as minhas competições acabam sendo treino e motivação para continuar correndo. Também já competi muay thai”, pontua. Nas corridas, ela integra a equipe local Itararé.
Do Pan à Europa
Aos 24 anos, dos quais nove são dedicados à luta e cinco às competições, a representante da equipe Chakuriki e estudante de Educação Física acumula os títulos de campeã mineira, brasileira, sul-americana e de vice-campeã pan-americana de kickboxing. Já integrou a seleção brasileira seis vezes, sendo a mais recente no mês passado, quando sagrou-se vice-campeã no Campeonato Europeu, na Croácia. “Sempre fui muito competitiva e, desde que entrei na luta, sempre sonhei em ser campeã mundial e crescer na modalidade, mas não imaginava que isso realmente chegaria a acontecer. Era um sonho. Hoje, graças a Deus, estou vivendo isso”.
A tocantinense, que fez até rifa para participar da disputa, explica que sua especialidade é o K1, uma espécie de “vale-tudo” do esporte, onde, entre outros aspectos, são permitidos todos os golpes e maior utilização de força. Foi assim que ela viveu uma das experiências mais importantes dessa trajetória – o Campeonato Pan-Americano, realizado no Brasil, no último mês de novembro. “Tinha atleta da Venezuela, da Argentina, do México e do Canadá. Ganhei a semifinal contra uma mexicana e a final ainda foi transmitida na televisão. Costumo lutar na categoria de 60kg, mas fui na categoria acima, de 65kg. Uma canadense acabou ganhando por pontuação, mas fiquei tranquila, porque foi uma experiência boa e ganhei muitos elogios. Foi uma virada de chave, porque agora o kickboxing se tornou um esporte olímpico e eu fui a primeira representante da Seleção Brasileira nessa nova fase. Isso abriu muitas portas para mim e vejo essa oportunidade como uma forma de crescer ainda mais no esporte, que é o que eu amo”, destaca.
Já em relação ao Campeonato Europeu, também com a seleção brasileira, Bárbara precisou ultrapassar outras barreiras. “Foi minha primeira viagem internacional e um verdadeiro gesto de coragem, porque precisei ir sozinha, pois meu treinador não teve condições de ir comigo. Fui na cara e na coragem, sem saber falar inglês e só arranhando o ‘basicão’ mesmo, fazendo curso online no celular. O pessoal me chamou de louca, mas eu amo desafio e esse foi só mais um”.
Desafios x oportunidades
Além da baixa temperatura, que chegou a -6ºC, a diferença cultural também foi um desafio. “Na Croácia, por ser um país que já teve guerra, as pessoas são um pouco mais difíceis de lidar. Os europeus olhavam ‘atravessado’ para nós, da seleção, por estarmos brincando e nos divertindo. Isso acontecia até na área onde ocorriam as lutas e acho que existe, sim, a questão de verem os sul-americanos como inferiores”, avalia. Isso também se refletiu na competição. “Senti que tentaram me desclassificar durante a luta, mas nem gosto de falar sobre isso, porque me dá um pouco de raiva. Sei o quanto treinei, eu estava muito confiante. Criaram uma situação com meu short que me deixou bem nervosa, porque vi que não tinha nada a ver e isso me incomodou bastante. Mesmo assim, lutei e até achei que tinha ganhado, mas a mesma atleta que venceu no ano passado acabou levando. Acredito que houve favoritismo, por ela ser da Europa, mas fiquei em segundo lugar entre seis lutadoras e isso já conta muito”.
A competição também abriu portas positivas. “Sempre foi meu sonho ir para a Holanda, porque lá o kickboxing é muito forte e consegui fazer isso antes de ir para o campeonato. Fiquei quatro dias lá, treinando, conhecendo treinadores de renome e várias academias. Foi uma experiência muito bacana e eu amei, porque o povo é muito mais simpático, mais receptivo e muito mais aberto. Além disso, através da luta na Croácia, recebi um convite para lutar como profissional na Itália. Vamos ver… Estou trabalhando para conseguir realizar essa parte”, revela.
Representatividade e empoderamento
Apesar de ver uma representatividade cada vez maior de mulheres no kickboxing, a kickboxer enfatiza que o número de competidoras ainda está aquém do desejável e não esconde os preconceitos enfrentados para se firmar no esporte. “Já passei por várias situações das pessoas duvidarem da minha capacidade, questionarem a minha sexualidade ou falarem que estou ficando com um corpo masculino. Muitos atletas já quiseram me desafiar, testar força comigo e mostrar que sabiam mais do que eu, mas a técnica sempre vence a força – e força eu também tenho de sobra. Sei lidar bem com essas coisas. Sou muito ativa e consigo responder todo desafio que impõem a mim”.
Autointitulada “Leoa”, Bárbara se orgulha de ter uma identidade forjada na batalha da vida, quando tantas vezes trabalhou como servente, pintora, faxineira, carregando entulho, fazendo jardinagem, lavando caixa d’água, colhendo frutas, entre tantas outras atividades. A coragem para rebater críticas e cobranças ainda se solidificou na construção da própria imagem. “Durante toda a minha fase de escola, sempre fui insegura. Sofri muitas situações com os colegas de sala e teve até professor que disse que eu precisava fazer escova progressiva, porque ninguém merecia ter um cabelo como o meu. Foi complicado me adaptar a isso, porque mexeu muito com a minha autoestima”, lembra. “Fui alisando meu cabelo, pois sabia que era mais ‘aceita’, mas aquilo era uma ferida para mim. Decidi fazer transição capilar em 2018 e hoje o meu cabelo é o amor da minha vida”.
Consciente de todo o sacrifício superado e dos obstáculos que podem surgir no caminho, ela chama atenção para o 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. “Esse é um dia de luta e eu, como mulher lutadora, fico muito feliz de ser espelho para outras mulheres, tanto no esporte quanto no empoderamento. Já lidei com dificuldade financeira, com vários empecilhos, mas estou conquistando muitas coisas e sei que posso ir muito além. Encorajo outras mulheres a também lutarem, não em cima do ringue, apesar dele estar disponível também, mas no dia a dia”, reforça. “Isso é uma construção diária mesmo. Construam aquilo que vocês querem, porque não há limites para uma mulher que luta pelos seus objetivos”.